domingo, 27 de outubro de 2013

R.I.P., Lou Reed.


Not a perfect day: Lou Reed morreu hoje, com 71 anos. Um dos fundadores de uma das melhores bandas de sempre, The Velvet Underground. Não sei se há álbuns ou músicas perfeitas. Mas se tal coisa existir, este álbum e esta canção são fortes candidatos ao título.
Um eterno obrigado.

Ao Homem verdadeiro e primitivo, que via o sol nascer e ainda o não adorava



Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
 Porque todos os homens, um momento do dia, o olham como eu,
 E nesse puro momento
 Todo limpo e sensível
 Regressam imperfeitamente
 E com um suspiro que mal sentem
 Ao Homem verdadeiro e primitivo
 Que via o sol nascer e ainda o não adorava.
 Porque isso é natural — mais natural
 Que adorar o sol e depois Deus
 E depois tudo o mais que não há.
          
CAEIRO, Alberto, O Guardador de Rebanhos, XXXVIII


sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A Strange Kind of Love, by Peter Murphy.

A strange kind of voice. A great voice, a lovely song. Like.

Bibliofilmoteca n.º 3: A Morte de um Apicultor, de Lars Gustafsson

(A bibliofilmoteca é o baú de onde irei retirando, de vez em quando, os filmes e livros de que na altura me apetece falar.)



Título:
A Morte de um Apicultor
Autor:  Lars Gustafsson

Edição portuguesa: Edições Asa, Porto, 1992 (1ª ed.)
Tradução: Ana Diniz     Nº de páginas: 174

É um dos meus livros preferidos, que revisito de tempos a tempos para ler umas páginas mais ou menos ao acaso. O excerto que publico neste post é um excelente exemplo da escrita subtil e despojada deste escritor. E também da sua capacidade de suscitar complexas questões filosóficas a partir de histórias invulgarmente imaginativas. A probabilidade do autor me processar pela divulgação que aqui faço do seu texto é praticamente nula, uma vez que é apoiante do Partido Pirata sueco, que defende, entre outras coisas, o fim do direito à propriedade intelectual, nomeadamente direitos de autor. A escolha de uma das suites para violoncelo de Bach deve-se ao facto de serem da preferência do escritor, como revela no perfil do seu blogue pessoal aqui.


Um mundo onde reina a verdade

No planeta número 3 do Sistema 13, em Aldebaran, existe uma civilização que se relaciona directamente com a realidade, sem símbolos intermediários.

A ideia de que, por exemplo, uma figura desenhada num papel representa alguma coisa mais do que ela própria é totalmente alheia aos miriápodes possuidores de uma força extraordinária que constituem o estádio civilizacional mais elevado do planeta.

A sua força invulgar pouco lhes adianta. Uma vez que o único símbolo de uma coisa que eles conhecem é a própria coisa, têm de transportar constantemente uma enorme quantidade de objectos. Neste planeta a expressão «uma retórica vigorosa» tem um significado real.

Por exemplo, quando se quer dizer «uma pedra aquecida pelo sol», só há uma maneira. É pôr uma pedra aquecida ao sol na mão, ou melhor, na pata daquele com quem se está a falar.

Se se quiser dizer «uma pedra gigantesca no alto de uma montanha», só há uma maneira de proferir essa frase. É carregar com uma pedra gigantesca para o cimo de uma montanha.

Produzir um poema, nestas circunstâncias, é uma prova de força que permanece, em toda a sua heróica evidência, por várias gerações.

A maior parte dos sonetos que esta civilização produziu parecem-se de certo modo com Stonehenge: formidáveis grupos de pedras alinhadas por heróicos antepassados, arquejando e gemendo, com as veias salientes, segundo um esquema ancestral.

Nesta civilização a mentira é, evidentemente, uma total impossibilidade. Se se quer dizer «amo-te» a alguém, só há uma maneira, que é fazê-lo. Se se quer dizer «não te amo», também só há uma maneira, que consiste em evitar fazê-lo. Se se for capaz.

Num mundo em que o símbolo é sempre coincidente com a própria coisa e esta não pode ser substituída por pequenos sons ridículos ou por fieiras de sinaizinhos bizarros desenhados num papel, sinais esses que nada têm a ver seja com o que for para além de uma frágil e transitória convenção, é claro que a verdade e o sentido, a mentira e o absurdo, serão coincidentes.

O único substituto da mentira que existe num mundo como este é, evidentemente, falar de forma tão incompreensível, tão absurda, que ninguém entenda.

A conversação normal, a conversa trivial, neste planeta, consiste em os seus habitantes tirarem de umas bolsas de couro que costumam trazer consigo uma quantidade de objectos muito pequenos, contas de vidro, pedrinhas de diversas cores, pauzinhos muito bem polidos — e trocarem-nos animadamente entre si.

O preço da verdade é elevado.

De todas as civilizações superiores da região dos velhos sóis, no centro da Via Láctea, não há nenhuma que viva tão isolada como esta.

A astronomia, naturalmente, é impossível. Não podemos falar de galáxias se for necessário transportá-las de um lado para o outro para nos referirmos a elas. Aliás, o próprio conceito de «planeta» é impensável.

Estes seres vivem numa planície avermelhada, delimitada por altas montanhas.
E nem para essa planície que, teoricamente, é o mesmo que «o mundo», eles têm um conceito.

(Caderno azul IV: 4)

Lars Gustafsson, in A Morte de um Apicultor



quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Do Tempo: que seria de nós sem as memórias?



Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei.
Agostinho de Hipona



Where are all the joys of yesterday?
Where, now, is the happiness and laughter that we shared?
Gone, like our childhood dreams, aspirations and beliefs;
Time is a thief, and he ravages our gardens,
Stripping saplings, felling trees,
Trampling on our flowers, sucking sap and drying seeds.
In the midnight candle-light of experience
All colour fades, green fingers grey…

Peter Hammill, in Forsaken Gardens


na casa onde nasci havia sons e cheiros meus
as pessoas que os tinham emprestavam-mos à memória
e eu incluía-os como amigos íntimos
João Negreiros, in o Outono visto pela janela

domingo, 20 de outubro de 2013

Ich bin ein Berliner


Um excelente filme de Wolfgang Becker. Com uma excelente banda sonora, também, do inimitável Yann Tiersen. Voltarei a ele para o comentar de um ponto de vista filosófico. Por agora, faz de postal dos correios para a Maria Miguel, que está em Berlim.

 Ich bin ein Berliner :)



sexta-feira, 18 de outubro de 2013

"Até que ponto devemos dizer a verdade?", um artigo de crítica filosófica da autoria de Joana Gonçalves

Joana Gonçalves, a jovem autora do artigo

Até que ponto devemos dizer a verdade?

por

Joana Gonçalves

Para realizar este artigo filosófico, inspirei-me numa passagem de um livro que li recentemente, “Memórias de Anne Frank”. Neste livro, o autor, Theo Coster, judeu e ex-colega de Anne, reúne cinco ex-amigos desta e recordam como eram as suas vidas durante a 2ª Guerra Mundial. Ao longo do livro, o autor acaba por recordar também a sua própria história dando-nos o testemunho em primeira mão de um sobrevivente ao Holocausto.

Numa passagem do livro, quando o autor faz referência ao seu percurso de vida, ao longo de todos aqueles anos em que os judeus foram perseguidos, conta-nos que não viveu um período atribulado tal como muitos dos seus colegas. Theo foi identificado como uma pessoa “normal” graças a um mero acaso que, segundo ele, lhe salvou a vida: algum tempo antes de se iniciar a guerra, o seu pai tinha sido obrigado a preencher um formulário sobre a ascendência dos seus avós. Este preencheu-o dizendo que Theo tinha dois avós judeus e dois não-judeus quando, na realidade, ambos os lados da família eram judeus. Quando um funcionário público recebeu esse formulário, identificou Theo como uma criança não judaica nos seus documentos de identificação, passando então a ser considerada uma criança “normal”.

O que mais me chamou à atenção na vida desta personagem é que sobreviveu à custa de uma mentira. Talvez se tivesse sido reconhecido como judeu, tal como Anne Frank fora, não tivesse tido a sorte de escapar impune a esta época histórica. Mas, afinal, até onde devemos encarar a verdade? É errado mentir em qualquer circunstância? A verdade é que na prática muitos de nós põem de parte essa hipótese. A mentira é vista por muitos como algo indesejável e incorreto. Mas será que realmente existe algum critério que separe as ações “moralmente boas” das “moralmente más” e que classifique a mentira como um ato incorreto em qualquer circunstância? Por exemplo, seria errado mentir a um criminoso que procurava um amigo nosso, de modo a salvar-lhe a vida? Deveríamos mentir para salvar a vida de alguém da nossa família?

Immanuel Kant afirma que nenhum indivíduo deve mentir em circunstância alguma e que devemos agir de acordo com o Dever e não a pensar nas consequências das nossas ações. Segundo Kant: “(…) o dever de veracidade não faz qualquer distinção entre pessoas –umas em relação às quais poderíamos ter este dever, outras a propósito das quais dele nos poderíamos dispensar– mas porque é um dever incondicionado, que vale em todas as condições.” Assim, segundo este filósofo, o pai de Theo fez mal em ter mentido para salvar a vida do filho. O seu dever era ter afirmado que este tinha quatro avós judeus, independentemente de conseguir ou não sobreviver à perseguição dos alemães, pois o mais importante era respeitar os deveres universais.

Já John Stuart Mill, um filósofo inglês do século XIX, defende uma perspectiva utilitarista, afirmando que devemos agir de modo a maximizar a felicidade, isto é, proporcionar o máximo de bem-estar ao maior número de pessoas possível. Segundo Mill, a atitude do pai de Theo foi correta pois permitiu que este sobrevivesse, sendo que qualquer pessoa na mesma situação deveria ter agido da mesma maneira.

Podemos ainda abordar a situação desta família segundo outra perspectiva: o egoísmo ético. Esta teoria diz-nos que devemos agir apenas em função do interesse de cada um e do próprio bem-estar. Ayn Rand, uma escritora de origem russa, afirma que “alcançar a própria felicidade é o objetivo moral mais elevado do ser humano”. Sendo assim, para um egoísta ético o pai de Theo agiu moralmente bem ao mentir para salvar a vida do filho pois agiu em função dos seus interesses.

Na minha opinião, a justificação do egoísmo ético face a este problema filosófico é a mais plausível. O pai do autor, ao querer salvar a sua família, sentiu-se na obrigação de mentir. É claro que muitos judeus acharam que não era o mais acertado e aceitaram o seu estatuto social, mas esta foi a forma de conseguir dar relevância aos seus interesses. Mas será que o que o pai de Theo fez foi o mais correto? Não sei e duvido que alguém saiba responder a esta questão com uma certeza absoluta. Uns considerarão que sim, outros que não. Mas deixemos isso ao critério de cada um.



COSTER, Theo, Memórias de Anne Frank, Porto, Edições Asa, 2012